Núcleos escultóricos e temáticas iconográficas
Iconografia franciscana
São Francisco de Assis nasceu na localidade italiana de Assis, em pleno ano de 1182. Pelas origens familiares e cultura na qual se desenvolveu, era metade francês, por parte de sua mãe, nascida na região da Provença e metade italiano, por intermédio do pai, um rico comerciante de tecidos de seu nome Pietro Bernardone.
Após uma juventude desafogada, pródiga e dissipada, seguiu-se a conversão ao ideal casto da vida de Cristo. Que, no seguimento dessa vivência o levou a fundar a Ordem dos Frades Menores, Mendicantes, aprovada em Roma pelo Papa Inocêncio III, dedicada ao apostolado e a uma vida de alegre renúncia. Segundo São Francisco de Assis, a pobreza foi a característica mais significativa do seu legado e ação ascética. Entre diferentes episódios de referência, renunciou à herança paterna para preconizar o casamento místico e simbólico com a dama pobreza. A quem, como a morte, ninguém abre a porta com prazer. Os primeiros discípulos dos seus ensinamentos e ascetismo agruparam-se nas proximidades da Capela da Porciúncula, parcela de terra nas imediações da colina de Assis. À Ordem dos Frades Menores, somou-se a Ordem das Clarissas, fundada por Santa Clara de Assis, especificamente dedicada às mulheres. E, por fim, a Terceira Ordem (Ordem Terceira), reservada aos laicos.
O objetivo do postulado de São Francisco de Assis era tomar parte numa cruzada e converter os fiéis. Como não conseguiu deslocar-se até à Síria, dadas as vicissitudes de uma tempestade, tentou chegar a Marrocos, pela via espanhola, mas a doença deteve-o no caminho. Em 1219, chega ao Egipto onde é recebido por um sultão. Entretanto, voltou à Umbria, lutou por manter a Ordem no rumo que desejava, mas tinha trazido do Egipto uma doença ocular. E, a par disso, a sua saúde ressentiu-se. Em 1223 celebrou a Natividade e a sua noite de Natal num bosque em Greccio, mediante a ocorrência de uma missa solene comemorada diante de um presépio, solenizando a sua peregrinação a Jerusalém (daí o papel fulcral que os Frades Menores assumiram na disseminação do culto ao presépio e à figuração desta narrativa, tornando-a popular). Em 1224, toma uma postura de eremita, retirando-se no monte Albernia no qual vivencia uma experiência sobrenatural. Ou seja, recebe uma visão de Cristo Crucificado que procede à sua própria estigmatização. Isto é, das feridas do corpo cristológico irradiam raios que se imprimem na própria carne de Francisco sobre a forma de estigmas – as cinco chagas que o acompanham até à morte. Durante os dois anos seguintes, embora sobejamente debilitado, continuou a ser exemplo vivo do Cristianismo, vindo a morrer em 1226 no convento de Porciúncula. Não foi aí sepultado, visto que o povo de Assis ao recear que a população de Perusa tentasse roubar o seu corpo, entendeu mais seguro proceder o devido sepultamento do seu féretro numa colina às portas da cidade. Colina essa que foi posteriormente batizada pelo termo "Colina do paraíso". Logo após a sua inumação, transformou-se numa figura de destaque. Foi canonizado em 1228, por Gregório IX, alcançando o estatuto de um dos santos mais populares da Cristandade.
Um dos aspetos mais relevantes na análise da iconografia de São Francisco de Assis é a sua dualidade. De facto, podemos considerar duas iconografias franciscanas. A primeira desenvolvida essencialmente em Itália entre o século XIII e a Reforma traçada a partir de 1563. Originária de uma segunda variante representativa do Santo denominada por Louis Réau de tridentina. Visto que remonta às diretivas do Concílio de Trento (1545-1563), sendo uma criação da Contra-Reforma, mas cuja universalidade atinge apenas no desenrolar do século XVII. Essencialmente pela via de artistas espanhóis e franceses.
Independentemente desta dicotomia iconográfica, a variabilidade quer das vestes, quer dos atributos que identificam e caracterizam São Francisco de Assis é reduzida. Considerando que as imagens de S. Francisco de Assis expostas na Sala da Capela de Delães pertencem aos séculos XVII e XVIII, o Santo é representado de acordo com o que podemos designar pelo termo iconografia tridentina.
Assim, verificamos que do ponto de vista fisionómico Francisco possui o rosto barbado em todas as esculturas desta sala. Todavia, mediante a adoção de diferentes tratamentos capilares, que oscilam entre uma maior ou menor densidade, comprimento e ondulação. Situação similar vislumbra-se ao nível da tonsura, distinguindo-se dois tipos essenciais: a tonsura interrompida e a tonsura fechada.
Igualmente e de acordo com a referida iconografia tridentina, as imagens são dominadas por uma expressividade notória, quase falante. Enfatizada por uma intensidade cénica evidente, não só na mímica dos rostos como na própria gestualidade, assim como na interação vigente entre gestos e olhares. Olhares sofridos, suplicantes, erguidos ora no sentido do céu, ora para o espetador ou atributos. Frequentemente complementados pela gestualidade dos braços elevados mas também cruzados, em cujas mãos ostentam ou indicam os signos principais pertencentes à iconografia do Santo.
De acordo com a tradição iconográfica, S. Francisco de Assis é representado com o hábito castanho da Ordem, cingido por um cordão com um número variável de nós. Na realidade e do ponto de vista cromático, no hábito franciscano e em termos legislativos, o castanho foi prescrito somente em 1912, pois até então era o cinzento que vigorava. Todavia, em termos artísticos, São Francisco de Assis foi sempre, ou quase sempre representado com um hábito mais tendente ao castanho que ao cinzento. Na realidade, além das diferenças pontuais na forma de certos indumentos que integram o hábito, é na cor que reside a principal diferença em termos de tratamento escultórico. E este conjunto franciscano patente na Sala da Capela de Delães denota, em parte, esta característica.
Quanto aos atributos, o mais particular e inconfundível contempla o conjunto das suas cinco chagas, os estigmas impressos nas suas mãos, pés e costado, este visível graças a um rasgo encetado no hábito. Inspirado no milagre da estigmatização de S. Francisco de Assis, este tipo iconográfico difunde o episódio mais popular de toda a lenda do Santo e consequentemente um dos preferidos dos artistas. Não só em Itália mas também em países do norte da Europa. Além dos estigmas, outros atributos permitem identificar instantaneamente São Francisco de Assis. Como fundador da Ordem dos Frades Menores, pode sustentar na mão, direita ou esquerda, o livro da Regra, aberto ou fechado. O crânio / caveira, símbolo da meditação é outro dos atributos presentes na iconografia franciscana. Sobretudo para enfatizar a sua devoção e ponderação constante acerca da figura de Jesus e do seu sacrifício salvífico. Essencialmente da "vitória sobre a morte" inerente à própria Crucificação ocorrida no "Monte do Gólgota" ("Monte da Caveira"), sobre o túmulo de Adão para redimir a Humanidade do "Pecado Original" (artística e frequentemente sintetizado pela presença de um simples crânio aos pés da Cruz de Cristo). Tal como sucede com outros Santos, nomeadamente Santo António de Lisboa, pode igualmente apresentar uma cruz ou crucifixo na mão e o rosário preso ao cordão que cinge o hábito. Além destes, alguns Autores acrescentam outros atributos a S. Francisco de Assis, por exemplo, as disciplinas, o lobo, o pássaro e o cordeiro.
Os cinco casos de estudo pertencentes à Iconografia franciscana
(Descrição das obras da direita para a esquerda da fotografia)
São Francisco de Assis – Escultura de vulto concebida em madeira policromada, estofada, dourada e carnada, de produção correspondente a um núcleo / oficina portuguesa de cariz erudito. Enquadrável nas diretrizes próprias da imaginária religiosa do século XVII, regrada pela Contrarreforma. N.º de Inventário: 1957. 1131.
Tendo por base o tipo de tratamento de cariz realista, a expressividade do rosto, a proporção equilibrada, as noções de movimento explícitas pelos pregueados serpeantes da sua indumentária, a flexão subtil do joelho e o avanço da sua perna esquerda face à direita, esta obra de torêutica, de vulto pleno, corresponde ao laivo criativo da produção de imaginária erudita do século XVII.
A partir do trabalho requintado da madeira policromada, estofada, dourada e carnada, mediante as opções prediletas da Contra-reforma na definição da iconografia de São Francisco de Assis, o Santo denota magreza ascética, dada a sua biografia de pobreza e castidade. Exibe na sua mão direita um Crucifixo simbólico da sua devoção a Jesus, endossa o hábito da “Ordem dos Frades menores”, de tom escuro, castanho sobretudo, rematado nalgumas extremidades por faixas douradas, típicas do Barroco português. Douramento que se repete no próprio cordão que cinge esta veste.
E, na vertente identitária, a mímica dramática da sua face (sublinhada pela boca entreaberta), tem como complementos a típica tonsura à volta do crânio, neste caso interrompida e com o cabelo subtilmente ondulado. Ondulação que demarca também a barba bífida de Francisco, análoga à de Cristo, o modelo que reproduz em vida e do qual, por experiência sublime e visão mística, recebe os estigmas no próprio corpo.
São Francisco de Assis – Escultura de vulto concebida em madeira policromada e carnada, de produção espontânea, desprovida, de certo modo, de realismo exacerbado, proporção e movimento, correspondente na sua autoria a um núcleo regional / santeiro de cariz popular. Enquadrável nas diretrizes próprias da imaginária religiosa portuguesa do século XVII, e iconograficamente regrada pela norma tridentina na abordagem a São Francisco de Assis (imitando, no hábito e atributos por exemplo, as Imagens coevas de produção oficinal erudita). N.º de Inventário: 1957. 1136.
Com os membros restritos, na grande maioria da sua volumetria, ao bloco central e ao hábito figurado, São Francisco de Assis, correspondendo ao formato iconográfico que a Contrarreforma impôs e o século XVII legitimou e difundiu, exibe dois dos seus atributos regulares. O Livro com a regra da Ordem na mão direita, dada a sua condição de fundador dos “Frades menores”, e um Crucifixo na homónima esquerda (aludindo, simbolicamente, ao momento hagiográfico da sua visão espiritual de Cristo Crucificado, originária da sequente estigmatização ascética do seu próprio corpo, reproduzindo as mesmas chagas cristológicas nas mãos, pés e costado).
Pela rigidez de movimento, apenas contrariada na ligeira flexão que se vislumbra nos braços e avanço subtil do pé direito face ao esquerdo – ambos com sandálias - a frontalidade prevalece nesta representação. Acentuada não só pelo posicionamento, olhar e hieratismo do rosto (despojado de expressão e proporcionalidade, visível por exemplo na extensão do seu nariz e orelhas). Como pelos pregueados retos e verticais da indumentária (do hábito castanho escuro cingido por um cordão omisso nos seus nós), e dos segmentos paralelos, desprovidos de qualquer ondulação, que dinamizam o próprio tratamento capilar, tanto na barba como no cabelo do Santo. Cabelo esse que se distribuiu por uma tonsura que circunda, de forma contínua, o crânio de Francisco e estabelece uma analogia à “Coroa de Espinhos” da Crucificação de Jesus. Aliás, uma iconografia capilar transversal a diferentes ordens monásticas.
O entalhe “em bloco”, assim como o imobilismo global da composição, a mímica contida, a falta de proporção ou de realismo exacerbado (flagrante no rosto figurado ou no trato dos panejamentos por exemplo), são sintomáticos da produção de cariz espontâneo, coletiva ou individual, dita popular, da qual esta imagem provém. Todavia, à semelhança de outras deste meio, não obstante a execução denotar carências técnicas próprias de quem as preconiza mais por devoção do que por ofício - privado, por isso, de formação ou habilidade especializada para o efeito - os modelos da Imaginária popular seguem os exemplos do quadro oficinal erudito, repetindo-os com maior ou menor sucesso.Aliás, a dicotomia de erudito e popular demarca a escultura religiosa do Barroco em Portugal, tanto na centúria de seiscentos (séc. XVII)como de setecentos (séc. XVIII).
São Francisco de Assis – Escultura de vulto concebida em madeira policromada, estofada, esgrafitada, puncionada e carnada, de produção correspondente a um núcleo / oficina portuguesa de cariz erudito. Enquadrável nas diretrizes próprias da imaginária religiosa do século XVII, regrada pela Contrarreforma. N.º de Inventário: 1957. 1133.
Do ponto de vista estrutural e iconográfico, esta escultura de vulto, de dimensão considerável e produção erudita, corresponde na maioria dos seus pormenores à representação regular, regrada pela Contrarreforma, de São Francisco de Assis. Tonsurado, mediante tonsura interrompida, com o rosto barbado, no qual o tratamento capilar evidencia ondulação e uma barba bífida (similar à que vislumbramos na maioria das representações de Cristo), e uma magreza ascética, Francisco conserva os seus atributos essenciais. Desde as sandálias nos pés, ao crucifixo na mão direita e ao hábito cingido por um cordão com diversos nós, por vezes alegóricos às próprias virtudes da sua hagiografia e Ordem.
No conjunto das esculturas franciscanas expostas na cenografia da “Sala da Capela de Delães” esta Imagem, quer pelo realismo e expressividade assente numa gestualidade suplicante - preconizada pela mímica da face, exibição do crucifixo e colocação da mão esquerda sobre o peito – quer pelo tratamento e riqueza de materiais, corresponderá ao exemplar de maior valia. Não obstante algumas das patologias que o restauro visará debelar e que ocultam pormenores desta obra, pelo estofado, esgrafitado e puncionado visível, o tom dourado prevalece na indumentária do Santo. Contrastando com a tonalidade escura, próxima do castanho sobretudo, que demarca a restante estatuária de São Francisco, tanto de cariz erudito como de matriz popular.
São Francisco de Assis – Escultura de vulto concebida em madeira policromada, estofada, dourada e carnada. Embora contemple alguns laivos de realismo, sobretudo na expressividade do rosto, dramatismo da sua pose e sugestão de pregueados na indumentária, numa tentativa de reproduzir os modelos eruditos o exagero e desproporcionalidade dos seus membros face ao volume e dimensão do corpo, aproxima a autoria desta obra a um núcleo regional / santeiro português de cariz popular. Enquadrável nas diretrizes próprias da estatuária religiosa do século XVII. E cuja iconografia veiculada é sintomática das da norma tridentina na abordagem a São Francisco de Assis (imitando, na sua mímica e hábito por exemplo, as Imagens coevas de produção oficinal erudita). N.º de Inventário: 1957.1132.
Sintomática dos cânones contra-reformistas na abordagem à figura de São Francisco de Assis, esta escultura de imaginária religiosa seiscentista (séc. XVII), com o Santo de rosto barbado (mediante barba bífida), tonsurado em redor do seu crânio com volumes capilares ondulados e vestuário próprio da “Ordem dos Frades menores” (mediante hábito cingido por cordão com vários nós, análogos às virtudes da sua hagiografia, e sandálias nos pés), corresponde ao contexto produtivo do Barroco português, assente no binómio “erudito versus popular”.
Ou seja, pese embora esta obra escultórica, de vulto inteiro, em madeira policromada, estofada, dourada e carnada insinue, na sua morfologia e estética, aproximações expressivas às prolíferas oficinas de produção erudita (visivas na mímica do rosto, tratamento capilar realista, dramatismo da pose, sugestão de pregueados na indumentária e motivos dourados aplicados sobre o hábito castanho-escuro). Por sua vez, a restrição dos seus pés à base, a frontalidade, alguma rigidez, desproporcionalidade do volume da sua cabeça e extensão exagerada dos membros superiores diante do corpo (ostensivamente elevados), enquadram este exemplar como resultante de um núcleo regional / santeiro de cariz popular. Que, na génese, tenta repetir, com menor domínio técnico e interpretativo, matrizes do foro especializado (dito “erudito”).
São Francisco de Assis – Escultura de vulto concebida em madeira policromada, estofada, dourada e carnada, de produção correspondente a um núcleo / oficina portuguesa de cariz erudito. Enquadrável nas diretrizes próprias da imaginária religiosa do século XVII, regrada pela Contrarreforma. N.º de Inventário: 1957.1135.
Num claro realce ao episódio místico mais significativo da hagiografia de São Francisco de Assis – a inusitada visão ascética de Cristo crucificado e estigmatização do seu próprio corpo com as chagas correspondentes – a expressão e gestualidade preconizadas (congruentes com a permuta de paradigma que a Contrarreforma incutiu e que se repercute sobretudo no Barroco), dirigem-se ao Crucifixo que exibe. Suportado através da mão direita, capaz de o elevar ao patamar da contemplação dos seus próprios olhos. E, mediante colocação da mão esquerda junto ao peito, enfatiza o rasgo no hábito e sequente ferida do seu costado, análoga à de Jesus.
Já na dimensão plástica, este trabalho de escultura de vulto em madeira policromada, estofada, dourada e carnada, deriva dos pressupostos realistas-naturalistas da produção de Imaginária religiosa erudita, situável no século XVII. Manifesto domínio técnico e pictórico é flagrante no trato anatómico, carnação, proporção e equilíbrio, expressividade, movimento e tipologia dos pregueados do hábito castanho-escuro (típico da “Ordem dos Frades menores”, cingido por cordão dourado). Assim como, da ondulação da sua barba bífida e da extensão capilar da sua tonsura contínua, circundante do crânio.